Ela ignorou os horrores da guerra e do preconceito, e nadou em Londres-1948
Daniel Brito
Eleonora Schmitt, 85, é paulistana, filha de alemães que migraram para o Brasil na década de 1920, e traz na memória histórias duras de se ouvir, mas importantes de serem lembradas e contadas. Como do dia em que tomou um voo na extinta Panair do Brasil com a delegação de atletas do país para disputar os Jogos Olímpicos de Londres-1948.
Ao embarcar, encontrou apenas uma poltrona vaga, ao fundo da aeronave. Era uma fileira de dois lugares. Ao lado, estava um negro esguio e sorridente. Eleonora sentou-se junto a ele, apertou os cintos e ouviu do vizinho de assento:
– Escuta, mocinha, se a cor da minha pele te incomoda, eu não vou ficar magoado se você preferir sentar-se em outra poltrona, fique à vontade.
Eleonora respondeu que não a incomodava, acomodou-se ao lado dele, que apresentou-se:
– Muito prazer, meu nome é Adhemar Ferreira, sou atleta do salto triplo. E você?
– Prazer é meu, sou Eleonora, atleta da natação.
Os dois conversaram do Rio até Londres, em um voo de mais de 12 horas de duração.
Apesar de o episódio ter ocorrido há 68 anos, Eleonora conta com uma riqueza de detalhes como se tivesse vivido a cena na tarde de ontem.
Adhemar ainda não era conhecido, tinha apenas 21 anos, estava indo para sua primeira participação olímpica. Somente em Helsinque-1952 viria a tornar-se campeão olímpico, e repetiria o feito quatro anos mais tarde, em Melbourne-1956.
“Foi uma cena curiosa, porque eu sou de família alemã e naquela época, após a Segunda Guerra, os pessoas viam de cara torta os alemães. Então disse para ele, acanhada, que minha família tinha vindo da Alemanha. Lembro-me que sorriu e respondeu que gostava muito da Alemanha, até cantou uma música em alemão, ele trazia um violão na bagagem. Ele era de uma educação, dono de uma conversa tão gostosa”, conta-me Eleonora, por telefone.
Discriminação contra as mulheres
Aquelas horas na companhia de Adhemar foram importantes para Eleonora. Ela tinha apenas 16 anos, compunha a equipe do revezamento 4x100m livre na natação. Viajara a contragosto do pai, o dentista João Schmitt, que só liberara a filha depois que o também nadador Willy Otto Jordan se responsabilizara em cuidar da jovem atleta na capital inglesa.
Após o desembarque, Adhemar e Eleonora não se viram mais durante aqueles Jogos de Londres-48.
As atletas foram alojadas no distante distrito de Wimbledon, na porção sudoeste de Londres. Os homens foram para outro local. Os treinadores, médicos e até os mantimentos ficaram com a delegação masculina.
As mulheres ficaram sem qualquer assistência, relembra Eleonora. Nem comida havia para as brasileiras. Por sorte, Alice, mãe da atleta, pusera em sua mala oito pacotes de 250g de café. “Quando arrumava a mala, a mãe me dizia: ‘Filha, leve esse café porque a Guerra acabou há pouco tempo, a Europa está em racionamento, você vai precisar’. Eu não queria levar aqueles pacotes, mas acabei pondo na mala. Foi a salvação”.
Eleonora lembra que Londres ainda estava sob escombros. Havia prédios e quarteirões inteiros detonados pelos bombardeios da Segunda Guerra. Não era o momento ideal para se promover uma Olimpíada na Europa.
Para resolver o problema da comida, Eleonora e uma outra atleta, as únicas que falavam inglês, fizeram amizade com as voluntárias que trabalhavam no refeitório da delegação dos Estados Unidos e da Argentina. Combinaram que, ao final da refeição das argentinas e americanas, esperariam na porta dos fundos para que as voluntárias trouxessem os restos de comida para servir às brasileiras.
“Houve muita reclamação das mulheres. Lembro que a Piedade Coutinho falou um monte com os chefes da delegação brasileira, mas não adiantava. Foi difícil, viu?”, rememora a nadadora.
Uma equipe especial
Piedade Coutinho foi uma das mais importantes nadadoras do Brasil, dona do recorde sul-americana nos 400m por 56 anos – só batido em 2004, por Joanna Maranhão. Piedade era uma das componentes daquele time do revezamento 4 x 100m em Londres-48, que reuniu características únicas. Além dela e de Eleonora, ainda havia Maria Angélica Leão da Costa, e Talita de Alencar Rodrigues, até hoje a mais jovem atleta olímpica da história do Brasil, que competiu aos 13 anos de idade em 1948.
Essa equipe terminou na sexta colocação no revezamento. Um excelente resultado, levando em consideração que nem local para treinamento elas tiveram acesso desde que chegaram a Londres. Ademais, Eleonora não era nadadora, mas atleta dos saltos ornamentais. Dois meses antes dos Jogos-48, ela treinou natação para entrar no time olímpico e conseguiu a vaga. Era a única representante de São Paulo no revezamento, as outras três competiam por clubes do Rio.
Reencontro e pedido de desculpas
Muitos anos depois de Londres-48, Eleonora voltava para São Paulo após um final de semana na praia e recebia o seguinte recado de sua empregada doméstica, Valdivina:
– Dona Eleonora, um negro imenso de grande veio aqui na porta procurando a senhora. Eu dispensei rapidinho, disse que a senhora não estava. Mas ele deixou o cartão dele, com nome e telefone.
O “negro enorme” era Adhemar, havia ido somente conversar na casa da amiga que conhecera no voo da Panair do Brasil rumo a Londres. À esta altura, Adhemar Ferreira da Silva já era bicampeão olímpico, uma estrela no país, mas ainda sofria com o preconceito – até mesmo de Valdivina, que segundo Eleonora, também era negra.
“Telefonei para ele e pedi desculpas pelo tratamento dado pela Valdivina, ele deu uma risada e disse que não tinha problema”.
Tocha Olímpica
Eleonora será uma das homenageadas neste domingo, 24, em São Paulo, durante passagem da tocha olímpica na cidade.
A história da participação de Eleonora nos Jogos Olímpicos de Londres-48 foi registrada no livro ''Atletas Olímpicos Brasileiros'', publicado em agosto de 2015 pela editora Sesi-SP, de autoria da professora Kátia Rubio, da Escola de Educação Física e Esporte da USP (Universidade de São Paulo), e sua equipe de pesquisadores.