A história do refugiado dado como morto que virou porta-bandeira olímpico
Daniel Brito
Sob a mira de um Ak-47, Lopez Lomong foi arrancado dos braços da mãe, ainda aos seis anos de idade.
Ante os olhares de mais de um bilhão de pessoas, ele entrou no Estádio Ninho do Pássaro, em Pequim, como porta bandeira da delegação dos Estados Unidos nos Jogos Olímpicos de 2008.
Entre esses dois episódios marcantes, Lopez Lomong acumulou experiência capaz de render um livro para cada dia vivido. Desde que foi sequestrado em Kimotong, hoje no Sudão do Sul, durante a guerra civil que partiu a nação africana em duas, até o momento atual, como atleta que tenta fazer dos Jogos do Rio-2016 sua terceira participação olímpica.
“Eu me tornei adulto aos seis anos de idade”, relembrou, em entrevista à rede de TV americana CNN. Foi com esta idade que milícias da segunda guerra civil sudanesa, no início dos anos 1990, interromperam a missa na igreja católica frequentada pela família dele e o levaram para a prisão juntamente com dezenas de outras crianças. “Aos seis anos, eu via crianças morrendo todos os dias na minha frente”, relata.
Na prisão, conheceu três adolescentes que estavam sendo treinados à força para servirem ao exército que raptou Lomong da família. Por sorte, eles conheciam um dos irmãos de Lomong e incluíram o garotinho no plano de fuga da prisão no Sudão – sim, ele ainda tinha seis anos de idade. Rastejou por buracos, correu por savanas e descampados, chegou ao Quênia após três dias e três noites de escapada.
A família o deu como morto, já que não havia mais notícias dele. Foi feito um velório e um enterro simbólico de Lopez Lomong em seu vilarejo.
Três dias e três noites rumo ao Quênia
Ajudado pelos adolescentes, Lomong chegou a Kakuma, campo de refugiados próximo a Nairobi, capital do Quênia. Foi de lá que viu pela TV o americano Michael Johnson ganhar o ouro olímpico pela quarta vez nos 400m, em Sydney-2000. “Na África, não existe o hábito de mostrar emoção chorando, mas Michael Johnson estava chorando no pódio com aquela medalha de ouro. Aquilo me impressionou”, contou ao jornal australiano Messenger, da cidade de Adelaide.
Um ano mais tarde, Lopez Lomong foi uma das 3.500 crianças do campo de Kakuma escolhidos para começar uma nova vida nos Estados Unidos, em um programa da ACNUR (Agência da ONU para Refugiados) com o governo dos Estados Unidos, chamado “Lost Boys of Sudan” (Garotos Perdidos do Sudão).
É que assim como Lopez Lomong e os três adolescentes treinados para servir às milícias, milhares de outras crianças tentaram fugir do Sudão, a maioria não teve a mesma sorte de Lomong e morreu pelo caminho, fosse de fome, de sede, de exaustão, até mesmo pneumonia e malária.
Chegada aos Estados Unidos
Nos Estados Unidos, Lomong foi para o Estado de Nova York, em Syracuse. Optou trocar o nome de batismo, escolhido pelos pais no Sudão, Lopepe Lomong, pelo apelido pelo qual tornou-se conhecido em Kakuma: Lopez Lomong. Mudou, também, a data de aniversário.
Foi adotado por uma família, juntamente com outros cinco africanos. Dedicou-se ao atletismo, além dos estudos. O corpo naturalmente esguio, a grande resistência muscular, caixa toráxica avantajada e pernas longas, destacou-se, ate conseguir se classificar para os 1.500m nos Jogos de Pequim-2008.
Como prêmio pela longa jornada desde o trauma até os seis anos de idade, foi eleito o porta bandeira da delegação na cerimônia. A eliminação na semifinal dos 1.500m não diminui em nada o brilho da sua história e o tamanho de sua bravura.
Classificou-se para Londres-2012, terminou em 10º nos 5.000m. Mesma prova que espera obter índice para competir no Rio-2016.
Ressurreição e desabafo
Em sua aldeia de origem, no Sudão do Sul, Lopez Lomong teve de passar pelo inusitado ritual de ressurreição. Sim, porque ele já havia sido dado como morto e sepultado. Apareceu na casa dos pais quando já era um atleta de alto rendimento dos Estados Unidos. Atualmente, os pais moram no Quênia, e os irmãos mais jovens ele pretende levar para morar com eles nos EUA.
No Sudão, desenvolve trabalho social para oferecer educação básica e, principalmente, água potável às vítimas da guerra civil.
Diante dos últimos acontecimentos em Paris, a hipótese levantada pela imprensa segundo a qual refugiados estariam envolvidos nos ataques terroristas de 13 de novembro, e o ranço que isso está causando nas camadas mais conservadores da sociedade dos Estados Unidos, Lomong utilizou-se de sua página no Facebook para pregar a paz.
“Quero agradecer ao povo dos Estados Unidos por abrir os braços para um refugiado. Por isso somos [Estados Unidos] um grande país, uma nação de todas as pessoas”.